O segundo Campeonato na Língua Paumari e a persistência das línguas e dos povos indígenas do Médio Purus
OIARA BONILLA, para a Amazônia Real
Ano passado, logo após o primeiro Campeonato
na língua Paumari, e diante da dificuldade em obter apoio financeiro
para sustentar o projeto do Campeonato na Língua e seus desdobramentos
(filmes, livros, animações gráficas), professores e lideranças paumari
da cidade e das aldeias, se juntaram para formar uma Comissão
Organizadora do Campeonato na Língua. Esta se reuniu regularmente em
Lábrea e articulou, com apoio da Federação das Organizações e
Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), do Programa Sou Bilíngue
Intercultural (SBI) – programa de ensino de línguas indígenas na cidade
– e da Coordenação Regional da Funai de Lábrea, no Amazonas, viagens de
informação, ao longo de todo o ano, para as diversas aldeias paumari da
Terra Indígena do Lago Marahã.
Esse trabalho coletivo acabou formando
uma verdadeira frente de articulação do evento, pressionando com
eficiência o órgão indigenista (que financiou inteiramente esta segunda
edição do campeonato), assim como os parceiros e apoiadores, para
garantir a continuidade do evento. Assim, o segundo campeonato aconteceu
e foi, mais uma vez e por várias razões, um grande sucesso.
No dia 15 de setembro, os barcos
Cuxiuara, do Conselho Missionário (CIMI),e Rio Purus, da Fundação
Nacional do Índio (CR-Lábrea), subiram o rio Purus levando participantes
e convidados da cidade e de outras comunidades paumari da região até a
aldeia Santa Rita, situada na beira do rio, a montante da cidade de
Lábrea (AM), na Terra Indígena Paumari do Lago Marahã. O evento foi
aberto pelo coordenador geral da Federação Indígena, Zé Bajaga Apurinã,
que fez um discurso enfatizando a importância da salvaguarda das línguas
indígenas, das culturas e da terra, fundamentos da vida dos povos
indígenas, e manifestando apoio à luta dos parentes Guarani e Kaiowá, do
Mato Grosso do Sul, por seus territórios tradicionais. Diferentes
membros da Comissão organizadora também discursaram, assim como alguns
apoiadores e convidados, como o vice-coordenador da Focimp, Marcílio
Batalha, e o cineasta indígena Alberto Alvares Guarani, que veio para
organizar uma oficina de vídeo e fotografia com jovens paumari, para
cobrir o evento e produzir material audiovisual para uso nas escolas
indígenas da região. Além de Alberto Guarani, parentes Apurinã e
Jamamadi também participaram do evento e apresentaram cantos, danças e
histórias ao público paumari.
Por que um campeonato?
O campeonato é um projeto que visa
revalorizar a língua paumari propiciando um momento de aprendizado
coletivo, lúdico e festivo. De fato, ele foi idealizado com o objetivo
de cativar a atenção das gerações mais novas, hoje muito atraídas pela
língua portuguesa, pela “cultura do Jara” (pelo consumo, pela
tecnologia) e pelo modo de vida da cidade, e de incentivar os mais
velhos a voltar a sentir orgulho de usar seu idioma para falar com os
filhos, procurando mostrar que ela é um vetor de união (e não de
separação) entre as gerações.
Outro objetivo é a produção de material
didático para as escolas, tanto no formato “clássico” de cartilhas e
coletâneas de histórias, como no formato digital de filmes, animações
gráficas, fotografias, jogos eletrônicos, etc. A opção por um evento
competitivo foi uma aposta do criador do projeto, o professor Edilson
Makokoa Paumari, para que a juventude se interessasse pelo evento. Nesse
sentido, a primeira edição do Campeonato foi um sucesso, pois ao longo
dos três dias de torneio, os mais novos foram progressivamente se
implicando nas atividades e na própria competição, demonstrando um
entusiasmo crescente e um empenho evidente na hora de falar e cantar na
língua.
Na segunda edição, o sucesso foi ainda
maior, pois a maioria dos times já chegou formado e preparado para a
competição, todos integrando crianças, jovens, adultos e idosos. Os
times haviam escolhido antecipadamente sua história, preparado sua
estratégia de apresentação e pensado nos figurinos, pinturas corporais,
cantos e danças que queriam apresentar ao público. Foi notável o
investimento de todos para, por um lado, resgatar motivos gráficos e
relembrar cantos antigos e, por outro, criar elementos gráficos novos
para as pinturas corporais, criando motivos novos e também se
apropriando de desenhos de outros povos (processo que foi motivo de
controvérsia ao longo do evento).
A competição
O primeiro dia foi dedicado à
apresentação dos times e à distribuição do material de trabalho, a
escolha dos nomes dos times (cada aldeia escolheu o nome de um animal ou
de uma planta) e à recepção de convidados de outros povos da região,
Apurinã e Jamamadi.
No segundo dia do Campeonato os nove
times – Morada Nova, Estirão, Extrema, Crispim, Santa Rita, Ilha da
Onça, Uidá, São Clemente, Igarapé Branco – apresentaram cantos e danças.
Estes foram avaliados pelos jurados e integraram a nota final outorgada
a cada time, sendo adicionada à nota da história apresentada. Ao longo
do segundo dia, os times começam a aprontar suas apresentações de
histórias, ensaiando a leitura, confeccionando cartazes e ilustrando os
relatos.
O terceiro dia foi inteiramente
consagrado às apresentações das histórias. Cada time escolheu uma
história do repertório da mitologia paumari. O desafio foi contá-la por
inteiro e sem recorrer a nenhum termo em português. Os quesitos
avaliados pelos jurados na hora das apresentações foram os da dicção e
da pronúncia, da estrutura da história, da postura do grupo e das
ilustrações. Todos os jurados eram Paumari. Foram foram escolhidos um
representante de cada uma das nove aldeias.
A história vencedora deste ano foi a do boto e da origem das plantas cultivadas (‘Basori athini hini), do time da aldeia Ilha da Onça, que já havia vencido no ano passado (leia aqui a história aqui). O segundo lugar ficou com o time da aldeia Estirão, que apresentou a história do homem que se casou com uma tartaruga (Siri imakhinava ija’ari biakavaniha’iki varani hini), e o terceiro lugar com o time da aldeia Morada Nova, com a história da mulher da qual os primos não gostavam (Ima’inavi kidi javi vanofiriki varani hini).
O projeto do Campeonato prevê que a
história campeã de cada edição seja transformada em animação gráfica,
inteiramente realizada pelos Paumari e falada na língua, legendada em
português. Esta segunda fase do projeto ainda aguarda apoio financeiro
para ser concretizada.
No encerramento, foram entregues os
troféus e seguiu-se uma noite de cantos e danças com muita comemoração. A
aldeia escolhida para acolher o próximo campeonato foi a Ilha da Onça,
também situada na T.I. do Lago Marahã, no Rio Ituxi, afluente da margem
direita do rio Purus.
É importante notar que ao longo de toda
a competição, diversas discussões foram pauta nos intervalos das
atividades. Ficou claro que o campeonato, único evento que atualmente
consegue reunir durante três dias consecutivos todas as comunidades –
independentemente de sua adesão religiosa (evangélicos ou não) e da
distância de suas aldeias – tornou-se um espaço para a discussão
coletiva de questões importantes para o povo paumari.
Assim, a questão da educação escolar
indígena, da falta de material bilingue, do despreparo dos professores
não-indígenas e da ausência ou deficiência de aulas na língua paumari
nas aldeias foi o pano de fundo das questões debatidas nos dois
primeiros campeonatos.
Mas outras questões também importantes
surgiram desta vez. A primeira, foi a das pinturas corporais e dos
motivos escolhidos para elas. Após longo debate, os Paumari decidiram
que deixariam de usar os motivos gráficos usados para o ritual de
puberdade feminino (amamajo) em eventos públicos e políticos.
Decidiram privilegiar outros motivos gráficos próprios, como os desenhos
usados na cestaria, para enfeitar os corpos em manifestações públicas.
A segunda questão debatida foi a da
possibilidade de se reservar um espaço maior para o forró e o brega ao
longo do campeonato. Enquanto os mais jovens pediam mais espaço para
dançar forró, alguns mais velhos, assim como os evangélicos, se
manifestavam contra isso. Isso gerou um debate acirrado sobre o que deve
ou não ser considerado como parte da “cultura paumari”, mas não se
chegou a nenhuma decisão coletiva. Uma coisa é certa, a segunda edição
do campeonato mostrou que a língua e a cultura paumari estão vivas,
assim como estão vivos todos os povos do Médio Purus, cada vez mais
visíveis e atuantes no cenário político regional e nacional.
*Oiara Bonilla é
antropóloga, professora da Universidade Federal Fluminense. Trabalha com
os Paumari desde maio de 2000 onde desenvolve pesquisa etnográfica
sobre sua cosmologia, política, língua e ritual. Ela acompanha o projeto
do Campeonato na Língua desde sua primeira formulação em 2010.
Atualmente, pesquisa sobre os cantos rituais e o papel das mulheres.
Link: http://amazoniareal.com.br/nossa-lingua-e-linda-e-ela-esta-viva/