martes, 11 de febrero de 2014

As terras indígenas no Brasil



Índios tenharim estão isolados nas aldeias e temem ataques (Foto: Gabriel Ivan)


O “tamanho da Bélgica” e a importância da garantia das terras indígenas no Brasil


BLOG AMAZôNIA REAL
OIARA BONILLA

Quem já não ouviu alguma vez um jornalista, um político ou até, mais recentemente, um juiz do STF (Supremo Tribunal Federal) comparar o tamanho de alguma terra indígena com a extensão da Bélgica? A escolha, quase obsessiva, pelos inimigos da causa indígena, da Bélgica como unidade de medida, para tentar horrorizar aliados ou a opinião pública com o tamanho supostamente excessivo de uma terra indígena, não deixa de ser interessante e digna de reflexão. 

Além do fato de se tratar de uma minúscula monarquia federal (30.528 km2), parece que a escolha desse país não se explica apenas pelo seu tamanho. Afinal, por que nunca usar a Guatemala, a Serra Leoa ou mesmo o Uruguai? Creio que, no fundo, o argumento se embasa no contraste preconceituoso entre um país de primeiro mundo `moderno´ e uma terra indígena ´primitiva´ (vide os argumentos sobre produtividade e improdutividade que geralmente acompanham esse tipo de comparação).

Mas, parece que pouco sabem aqueles que recorrem a essa “unidade de medida” sobre os profundos embates territoriais e linguísticos que dividem política e ideologicamente aquele país e que não encontram nenhum caso semelhante no mundo indígena. Tampouco sabem sobre a situação ambiental da Bélgica, cuja superfície está fortemente urbanizada (20% do território já está construído ou asfaltado). Nada mais oposto à situação das terras indígenas demarcadas, que são campeãs de preservação da biodiversidade no país, registrando os menores índices de desmatamento, tanto na Amazônia quanto no cerrado. 

Ironias à parte, o mais importante é ressaltar o quanto esse tipo de argumento é alheio ao pensamento e às concepções indígenas de território, espaço ou terra. No Brasil, são hoje 241 povos indígenas, que falam mais de 150 línguas – tão distintas entre si quanto o português, o alemão e o chinês – e essa diversidade apenas nos permite entrever a variedade de mundos que ela implica. 

Quando os povos indígenas são indagados sobre suas terras, mobilizam conceitos que fogem a nossa concepção ocidental de propriedade. A terra não é um bem, limitado e circunscrito, que se pode ou se deve explorar, para dela tirar seu sustento ou lucrar. Ela é antes de mais nada um espaço relacional, i.e. o espaço dinâmico e multi-dimensional sobre e com o qual se estabelecem relações com outros seres humanos e não-humanos (terrestres, aquáticos, aéreos; visíveis e invisíveis). 

A vida é fruto dessas relações. Ou melhor dizendo, tirar seu sustento de um determinado território é estabelecer com os seres humanos e não-humanos que o habitam diversos tipos de relações que são precisamente a garantia e o sentido da vida. Assim, caçar não é apenas predar uma ou outra espécie animal, mas sim estabelecer com ela relações, por exemplo, de guerra, de casamento, ou de intercâmbio. O leitor vai se surpreender: como assim estabelecer trocas com não-humanos?

Justamente, porque falar em terra indígena, nos termos indígenas, não é falar apenas em espaço territorial, é acessar outros mundos, diferentes do nosso, onde humanidade, animalidade, natureza e sobrenatureza não se definem nem se articulam separadamente. 

Na coluna anterior, apresentei um exemplo de gestão territorial em terras indígenas que está dando seus primeiros frutos. Ele pode ajudar a entender este ponto: se os Paumari escolheram o manejo do pirarucu, não é apenas porque o pirarucu é lucrativo e está em extinção (uma vez que nossos pescadores urbanos estão acabando com ele, para abastecer o nosso mercado interno) – essas são as “nossas” razões, que eles também conhecem e mobilizam – mas é, sobretudo, porque os Paumari tecem relações com os seres aquáticos, interlocutores importantes em seu mundo.

Com estes seres trocam-se objetos, nomes e alimentos nos rituais, estabelecem-se alianças xamânicas que permitem a cura de doenças, e assim por diante. Portanto, matar um pirarucu não é apenas matar um bicho (para comer ou vender). Pescar, caçar, matar, cozinhar, criar, consumir e até vender são todos atos e processos que implicam sempre relações com coletivos diferentes, inscritas em temporalidades e espacialidades diversas. Sendo assim, são precisamente as relações com esses coletivos que definem um espaço de uso, um território, uma terra. Ao longo de um processo demarcatório, cabe aos antropólogos, em seus trabalhos de identificação, mapear e entender essas dinâmicas relacionais. 

Limite, tamanho, propriedade, controle, começo e fim de um espaço, só fazem sentido contextualizados pelas relações que estão em jogo. A garantia da terra proporcionada pela Constituição, apesar de fixar limites e de se sobrepor à diversidade e à fluidez das concepções indígenas de espaço e território, deve garantir terra suficiente, assegurando o espaço vital que permite a continuidade existencial dos povos indígenas.

Retalhar, atravessar, controlar, limitar, ainda mais essas terras e seus processos de reconhecimento, como propõem inúmeros projetos de lei que tramitam hoje nos corredores de Brasília (vide a Portaria 303 da Advocacia Geral da União, atualmente em foco), significa assinar a sentença de morte destes povos. Respeitar a Constituição e as convenções internacionais assegura espaço para a existência plena, o “bem viver” dos povos indígenas. E, talvez um dia (quem sabe?), seremos capazes de aprender com eles a conviver com outros mundos, sem nos preocupar com o tamanho da Bélgica.