O “tamanho da Bélgica” e a importância da garantia das terras indígenas no Brasil
BLOG AMAZôNIA REAL
OIARA BONILLA
Quem já não ouviu alguma vez um jornalista, um político ou até, mais
recentemente, um juiz do STF (Supremo Tribunal Federal) comparar o
tamanho de alguma terra indígena com a extensão da Bélgica? A escolha,
quase obsessiva, pelos inimigos da causa indígena, da Bélgica como
unidade de medida, para tentar horrorizar aliados ou a opinião pública
com o tamanho supostamente excessivo de uma terra indígena, não deixa de
ser interessante e digna de reflexão.
Além do fato de se tratar de uma minúscula monarquia federal (30.528
km2), parece que a escolha desse país não se explica apenas pelo seu
tamanho. Afinal, por que nunca usar a Guatemala, a Serra Leoa ou mesmo o
Uruguai? Creio que, no fundo, o argumento se embasa no contraste
preconceituoso entre um país de primeiro mundo `moderno´ e uma terra
indígena ´primitiva´ (vide os argumentos sobre produtividade e
improdutividade que geralmente acompanham esse tipo de comparação).
Mas, parece que pouco sabem aqueles que recorrem a essa “unidade de
medida” sobre os profundos embates territoriais e linguísticos que
dividem política e ideologicamente aquele país e que não encontram
nenhum caso semelhante no mundo indígena. Tampouco sabem sobre a
situação ambiental da Bélgica, cuja superfície está fortemente
urbanizada (20% do território já está construído ou asfaltado). Nada
mais oposto à situação das terras indígenas demarcadas, que são campeãs
de preservação da biodiversidade no país, registrando os menores índices
de desmatamento, tanto na Amazônia quanto no cerrado.
Ironias à parte, o mais importante é ressaltar o quanto esse tipo de
argumento é alheio ao pensamento e às concepções indígenas de
território, espaço ou terra. No Brasil, são hoje 241 povos indígenas,
que falam mais de 150 línguas – tão distintas entre si quanto o
português, o alemão e o chinês – e essa diversidade apenas nos permite
entrever a variedade de mundos que ela implica.
Quando os povos indígenas são indagados sobre suas terras, mobilizam
conceitos que fogem a nossa concepção ocidental de propriedade. A terra
não é um bem, limitado e circunscrito, que se pode ou se deve explorar,
para dela tirar seu sustento ou lucrar. Ela é antes de mais nada um
espaço relacional, i.e. o espaço dinâmico e multi-dimensional sobre e
com o qual se estabelecem relações com outros seres humanos e
não-humanos (terrestres, aquáticos, aéreos; visíveis e invisíveis).
A vida é fruto dessas relações. Ou melhor dizendo, tirar seu sustento
de um determinado território é estabelecer com os seres humanos e
não-humanos que o habitam diversos tipos de relações que são
precisamente a garantia e o sentido da vida. Assim, caçar não é apenas
predar uma ou outra espécie animal, mas sim estabelecer com ela
relações, por exemplo, de guerra, de casamento, ou de intercâmbio. O
leitor vai se surpreender: como assim estabelecer trocas com
não-humanos?
Justamente, porque falar em terra indígena, nos termos indígenas, não
é falar apenas em espaço territorial, é acessar outros mundos,
diferentes do nosso, onde humanidade, animalidade, natureza e
sobrenatureza não se definem nem se articulam separadamente.
Na coluna anterior, apresentei um exemplo de gestão territorial em
terras indígenas que está dando seus primeiros frutos. Ele pode ajudar a
entender este ponto: se os Paumari escolheram o manejo do pirarucu, não
é apenas porque o pirarucu é lucrativo e está em extinção (uma vez que
nossos pescadores urbanos estão acabando com ele, para abastecer o nosso
mercado interno) – essas são as “nossas” razões, que eles também
conhecem e mobilizam – mas é, sobretudo, porque os Paumari tecem
relações com os seres aquáticos, interlocutores importantes em seu
mundo.
Com estes seres trocam-se objetos, nomes e alimentos nos rituais,
estabelecem-se alianças xamânicas que permitem a cura de doenças, e
assim por diante. Portanto, matar um pirarucu não é apenas matar um
bicho (para comer ou vender). Pescar, caçar, matar, cozinhar, criar,
consumir e até vender são todos atos e processos que implicam sempre
relações com coletivos diferentes, inscritas em temporalidades e
espacialidades diversas. Sendo assim, são precisamente as relações com
esses coletivos que definem um espaço de uso, um território, uma terra.
Ao longo de um processo demarcatório, cabe aos antropólogos, em seus
trabalhos de identificação, mapear e entender essas dinâmicas
relacionais.
Limite, tamanho, propriedade, controle, começo e fim de um espaço, só
fazem sentido contextualizados pelas relações que estão em jogo. A
garantia da terra proporcionada pela Constituição, apesar de fixar
limites e de se sobrepor à diversidade e à fluidez das concepções
indígenas de espaço e território, deve garantir terra suficiente,
assegurando o espaço vital que permite a continuidade existencial dos
povos indígenas.
Retalhar, atravessar, controlar, limitar, ainda mais essas terras e
seus processos de reconhecimento, como propõem inúmeros projetos de lei
que tramitam hoje nos corredores de Brasília (vide a Portaria 303 da
Advocacia Geral da União, atualmente em foco), significa assinar a
sentença de morte destes povos. Respeitar a Constituição e as convenções
internacionais assegura espaço para a existência plena, o “bem viver”
dos povos indígenas. E, talvez um dia (quem sabe?), seremos capazes de
aprender com eles a conviver com outros mundos, sem nos preocupar com o
tamanho da Bélgica.